domingo, 29 de setembro de 2019

O CHEIRO




Ali, parado na calçada, olhando para o sinal vermelho, indiferente a vida que fervilha ao redor, preso hipnoticamente àquela luz e ao relógio de pulso. A única preocupação é a urgência, a pressa de chegar ao objetivo. Ao lado, um jovem olha o celular, uma garota mexe nos cabelos e joga a cabeça num gesto quase sensual. Os carros à frente passam rápidos e dentro deles pessoas cinzas e inexpressivas,  fitam seus destinos sem se darem conta da inutilidade e mediocridade de suas vidas. Um velho arrastando sua bengala segue rua acima, sem forças para levar seu corpo e sem a coragem de se livrar do resto de vida que teima em lhe doer. Mais a frente, um cachorro sem dono e com fome demais, exibe suas costelas e seus dentes ao homem que passa ao lado do lixo que lhe mantém nesse quase viver. Duas senhoras com sacolas cheias de inúteis roupas, compradas para vestirem suas mazelas de cores alegres e fantasiarem seus corpos decadentes, estriados e disformes, vítimas do tempo e da conformação, conversam sobre coisas sem importância como se fosse a ultima revolução humana. Logo atrás delas, impacientam-se os dois rapazes de mãos dadas e rostos maquiados, exibindo as marcas dos preconceitos nos seus olhos assustados que esquadrinham ao redor.
            Além, do outro lado da calçada, uma porta se abre e dela sai um senhor de meia idade, de corpo roliço e roupa cara, sorriso malvado e sincero, chuta um gato na calçada, que dispara assustado esbarrando nas pernas de um garoto franzino, vestido de Batman que pula de lado, tropeça numa pedra solta e cai de cara na calçada, tingido de rubro o cimento sujo e provocando o grito desesperado de uma mãe distraída, que olhava extasiada o peito quase nu do rapaz na oposta calçada... A luz fica verde e liberta-o de sua prisão hipnótica, olha ao redor, como se visse um mundo estranho, como se estivesse em uma dimensão distinta, percebe tudo como imagens pálidas, desbotadas pelo tempo, enfumaçadas, esvaindo-se no ar. Dá um passo largo em direção à luz e outro e mais outro, quase corre, alcança a calçada em mais uma dúzia de passos e segue em frente, desvia do pequeno Batman sangrando e da mãe desesperada, que xinga o gordo cínico de sapato envernizado e segue o gato apressado, que foge sem olhar para trás.  
Sua mente é só um pensamento. Acaricia o volume em seu bolso, quase sorri, quem o vê, não poderia imaginar que atrás daquele rosto jovem, másculo e simétrico, com olhos e cabelos claros, levemente ondulados, a boca fina e bem feita, um corpo bem torneado, ombros largos e braços musculosos, pernas  igualmente sadias e bem tratadas, enfim, noventa quilos distribuídos de forma bem simétrica no seu metro e oitenta de altura e vinte e cinco anos vividos, e que a maioria das mulheres certamente dispensariam muito mais do que um simples olhar, se esconde um rapaz perdido, assombrado pelo medo e pela dor. Ninguém poderia imaginar a raiva contida, o desejo de sangue, sempre reprimido, pulsando, latejando na sua mente, transformando seu riso em fogo e seu olhar em lâmina.
            A cada passo Jorge sente-se mais confiante, gotas de suor lhe escorrem pela face e também lhe encharcam as axilas, um odor masculino lhe chega às narinas, e ele cerra os dentes, aperta o metal no bolso e solta o ar pelo nariz, levanta a cabeça, fixa o olhar  e pensa na sua cama velha, no seu colchão rasgado  e na sua mãe bêbada, seu pai drogado, corpos nus, suados daquela luta frenética permeada de gemidos e palavrões, de soluços e rangidos de uma cama quebrada. Ele encolhido, assustado, sem saber o que fazer, debaixo do seu lençol remendado, ouvindo e sofrendo, imaginando e morrendo... É o mesmo cheiro que sentia, quando cansada, sua mãe vinha olhar se ele dormia.
Crescera odiando aquele cheiro, era o cheiro do seu pai, depois da luta e do prazer com sua mãe. Mesmo em meio ao álcool e ao sangue, ao sêmen e a urina, ele estava lá, fosse quando acordava nas camas de motéis, nos braços das prostitutas nos bordeis da periferia ou nos becos onde se drogava, nos banheiros públicos, aquele cheiro se sobressaía como um perfume maldito, que entranhara-se em seu nariz, sufocando-o, obrigando-o a libertar, a cessar o sofrimento daquelas almas condenadas. Ele sabia que não podia parar, ele tinha que continuar na sua missão!
Ainda adolescente, quase um menino, ao lado do corpo de sua mãe, que sangrava no centro da casa, um corte na garganta, cabelos ensopados, a boca aberta em um ronco gutural, nua, exposta a sua vergonha e aos olhos curiosos dos vizinhos, ele sentia o cheiro, além do barulho e das sirenes, dos homens de branco e do pinho sol, ele estava por todo canto, pairava por toda casa, enchia a rua! Mais tarde, já homem feito, sentira aquele cheiro na sua forma mais pura, exalada diretamente do corpo daquele que lhe dera  a vida, caído, esparramado numa viela escura, sangrando e tossindo engasgado nos próprios fluidos que jorravam de sua boca e dos inúmeros furos em seu abdômen, mesmo após a ambulância sair e o rabecão leva-lo em uma caixa metálica, aquele resto de carne, que um dia fora seu pai, o cheiro continuou no seu nariz dias e dias...



Manoel N Silva