sábado, 16 de outubro de 2010

DIÁLOGO VIRTUAL II



 RAZÃO: valor ou instrumento?

YEDRA
“A Razão nasceu como um valor enquanto "Logos", passou a ser instrumento no período medieval, voltou a ser um valor no início da modernidade, e na nossa contemporaneidade, novamente passou a ser um instrumento." (?)
Nos períodos em que a razão é um valor mais do que um instrumento podemos dizer que ocorreu um avanço da liberdade?
MANOEL
Desenha aí para mim, não compreendi a razão como valor, nunca a vi ser tratada assim, sempre foi ferramenta, de menor ou maior valor, conforme a época, não?
YEDRA
A razão é um valor para o homo sapiens e um instrumento para o homo faber... pelo menos é assim que eu entendo a distinção.
Estou querendo chegar a Habermas... Você vai comigo?
LEO
A razão pode receber o sentido de valor, quando em determinado uso cultural do termo ela se aplica aos posicionamentos éticos. Valor tem sentido moral e quando a razão é colocada como o critério mais elevado de juízo moral, avançamos, como diz a Yedra, para uma sociedade mais justa por estar isenta de preconceitos, ideologias racistas e arbitrariedades.
MANOEL
Se conseguir acompanhar seu pensamento, vou sim, estou precisando me encontrar com Habermas, ainda não fui apresentado a sua filosofia, ao seu modo de ver a realidade...vamos lá!!!
Quando o homo sapiens se desvinculou do homo faber, ou pelo menos como se dá essa distinção?
LEO
Habermas é muito interessante, vai ser uma boa ajuda neste percurso de reflexão.
YEDRA
Habermas, seguindo a tradição da Escola de Frankfurt, da qual fazia parte, desenvolve uma outra modalidade de análise social, acompanhando o desenvolvimento crítico desta Escola. Ele faz a análise da sociedade industrial contemporânea, em termos de racionalidade, e destaca o fato de que neste tipo de sociedades impera a razão instrumental, ou seja, aquela que estabelece os meios para alcançar determinado fim. Esta razão é amplamente utilizada pela técnica e pela ciência em suas aplicações práticas. Ele trabalha suas ideias através da dicotomia que estabelece entre trabalho versus interação. Sendo que no âmbito do trabalho vigora a razão instrumental e as relações do tipo sujeito X objeto, enquanto na esfera de interação, que é o campo da comunicabilidade humana propriamente, as relações são se sujeito para sujeito.
MANOEL
Vejo aí uma volta a Hegel... Habermas parece querer ignorar, assim como Hegel ignorou as contradições existentes entre esses dois "sujeitos". Temo que a posição dele seja um regresso e não um avanço. Ele parece querer fugir do pessimismo do século, ignorando a realidade do sistema que, apesar de querer parecer separado do homem como sujeito, não é. Trabalho e sociedade são inseparáveis. Operário e sujeito são um só, homo sapiens e homo faber são abstrações, o que existe é o homem, sujeito das contradições nas relações com o mundo.
YEDRA
Concordo que o homem viva e aja em estado de complexidade, contudo dentro de suas complexidade, ele pode funcionar de modo mais direcionado e utilizar mais uma modalidade de racionalidade. Habermas insiste na importância da "razão comunicativa", como ele denomina o emprego da razão aliada à linguagem e que associa estreitamente "sujeitos falantes", que querem entender e serem entendidos. Ele afirma que o progresso técnico como meta geral da sociedade, apaga da consciência dos homens o dualismo trabalho e interação, o que acaba fazendo com que a evolução do sistema social pareça ser determinada pela lógica do progresso científico e técnico.
LEO
Entendo e concordo com a proposta de Habermas.
Quando confrontamos o outro com a possibilidade de uma comunicação fundamentada na razão, trazemos um "juíz isento" para o debate. Quer dizer que a razão deixa de ser meramente instrumental e passa a ser comunicacional, surge como norteadora do desenvolvimento humano. Todo posicionamento partidário, sectário e irreconciliável deve ceder diante do tribunal da razão, basta que as pessoas envolvidas no processo estejam dispostas a abrir mão desta postura irredutível. Quando em vez de dois disputarem por "ter a razão", ambos podem tentar alcançar a razão, aprendendo cada um com o caminho apresentado pelo outro na interação sujeito X sujeito.
MANOEL
Não serão as palavras, ditas de modo claro e compreensível, que vai apagar a realidade disso que ele coloca como simples aparência. Não podemos separar razão comunicativa de razão instrumental, ambas existem no processo. E "que a evolução do sistema social pareça ser determinada pela lógica do progresso científico e técnico." a sociedade contemporânea É determinada pela lógica do progresso cientifico e técnico.

E qualquer tentativa de pensar uma ética para esta sociedade tem que levar em conta esta realidade que do sistema capitalista.
Obs.: a referência ao sistema capitalista não é uma postura ideológica e sim simplesmente analítica.
LEO
Penso que a Yedra está enfatizando a diferença entre a razão comunicacional e a instrumental não por que sejam processos totalmente independentes, mas que a primeira concepção traz sua distinção por não ser de natureza manipulativa, característica que se pode associar à segunda.
MANOEL
Leo, a meu ver não existe essa possibilidade de um "juiz isento", não existe essa dualidade, a razão, assim como o homem é um só sujeito. Essa abordagem com a qual vocês me acenam parece uma conformação com o sistema, uma tentativa de separar o homem do trabalho, a sociedade da economia. Parece algo assim como dizer: Bem, o trabalho é sacana, injusto, mas aqui, na nossa privacidade social, podemos ser felizes e respeitar o outro...me soa tão hipócrita quanto, aquela antiga e milenar frase " à césar o que de césar...."
LEO
Manoel, Eu já não entendi desta forma. A razão não pode ser cindida, mas podemos descrever processos distintos que se fundamentem nela. Um é o processo instrumental manipulativo e utilitário, outro é o processo comunicacional espontâneo e gerador de desenvolvimento pessoal. A figura do "juiz isento" ganha o sentido de desempate argumentativo: eu digo A, tu dizes B, mas ambos estamos tentando descrever C, C é o "logos", o sentido último de verdade. Coloca tudo na mesma caixa que fica mais fácil de concluirmos que A + B = C. Tua fórmula é modular, seria assim: |A| x |B| = ?.
Não vi nenhuma hipocrisia na proposta, e a comparação com a frase milenar é esdrúxula, por que Jesus estava mesmo era acusando a hipocrisia do sistema, se a face de César está na moeda: "Dá a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus" por mais que certas coisas se misturem, elas não deveriam se misturar, um é o campo da política, outra é a seara da religião; um é assunto de fé, outro é objeto da razão.
MANOEL
Leo não são fórmulas lógicas que definem a realidade... A minha formula não existe, pois que ela é resultado da interação, da relação entre a e b, e não há uma resposta única para tal proposição, mesmo porque não há uma divisão clara entre a e b, não são dois campos distintos de atuação, da mesma forma que não posso dar "a césar o que é de césar", se é do suor do meu trabalho que vem a moeda...Do mesmo modo, meu caro Leo, não existem negócios de fé e negócios de razão, nem negócios de politica e de religião, tudo se entrelaça numa única concepção: o homem!

Qualquer filosofia, qualquer teoria que não leve em conta essa complexidade entrelaçada do ser humano, está fadada a ser mera teoria, sempre.
LEO
Concordo. Mas o simples fato de teorizarmos já se constitui em enquadramento acerca do assunto que estamos investigando. Ninguém pode ver toda a complexidade humana simultaneamente... Toda reflexão que fazemos implica em recortes da realidade que intentamos descrever. Precisamos dividir o assunto humanidade em diversos capítulos o que não quer dizer que sejamos capazes de capitular o Homem em toda a sua complexidade. As fórmulas são como nossas frases, nossas verdades proposicionais, servem apenas para ilustrar uma ideia, não têm a pretensão de esgotar a realidade sobre qualquer coisa, ainda menos quando falamos do homem!
MANOEL
Leo, pelo que consegui apreender do que a Yedra colocou, Habermas propõe um distanciamento da tecnologia e ciência, uma separação da economia e da política, do trabalho e da produção, da sociedade e do sistema. haveriam duas esferas de atuação humana a que abrangeria a economia e a produção ,que seria regida pela razão instrumental e a outra esfera reuniria os aspectos humanos política e trabalho, que seria norteada pela razão comunicativa. Sendo esta última esfera o mundo real do homem como sujeito, dessa forma ele encararia a outra esfera como mera necessidade instrumental, a produção e a economia como funções técnicas e mecânicas. Isso, a meu ver, é impossível, visto que essas duas esferas se entrelaçam de forma que dificilmente conseguiríamos distinguir uma da outra.
LEO
Manoel, Se sua apreensão estiver correta, concordo plenamente com suas conclusões....mas esperemos a Yedra mastigar um pouco mais esse negócio...
YEDRA
" Habermas propõe um distanciamento da tecnologia e ciência, uma separação da economia e da política, do trabalho e da produção, da sociedade e do sistema."
A questão da racionalidade é central em Habermas, o que ele propõe é a "reconstrução" do conceito e para tanto ele se coloca na perspectiva político-cultural para elucidar a relação entre teoria (saber teórico) e prática (atividade humana). No interior da sociedade coexistiriam os diferentes sistemas de ação, que compõem o que ele denomina de "mundo da vida". Ocorre que este "mundo da vida", que é a realidade inesgotável das vivências humanas, vai se tornando cada vez mais saturado de informações à medida que a sociedade vai se tornando mais técnica e especializada. Habermas nos acena com uma possibilidade de fuga e de crítica ao racionalismo instrumental, pelo caminho libertador da comunicação genuína.
MANOEL
Yedra, poderia  me colocar como esse "discurso" se aplica as relações de produção e consumo? Em que nível de participação e inclusão as regras de mercado participam desta comunicação ética?
Acho interessante, buscar um discurso ético, porém como ele se aplica a realidade, sem que para isso, seja necessário a relativização e a alienação de aspectos importantíssimos do sujeito, como as relações contraditórias entre trabalho como atividade para suprir as necessidades do sujeito e a ilusão consumista?
YEDRA
Dizer discurso ético significa associar uma consciência moral; e a consciência em seu sentido moral, vincula-se essencialmente ao outro; ela é de essência comunitária. Orienta-se menos pela vontade ou a razão do que pela emoção, o afeto, a pré-consciência comum ou mesmo o inconsciente coletivo. Este movimento de sujeito para sujeito, que envolve a "ação comunicativa", desaliena o homem de seu papel de "coisa" e o coloca em contato com uma rede de relações pessoais, condição esta que favorece a construção de uma consciência moral, fundamentada no outro "igual a si".
MANOEL
Sim, Yedra, isso é o mesmo que vejo na eticidade hegeliana, em vez de desalienar o sujeito , isso aliena mais ainda, pois que essa "ação comunicativa" é abstrata, tanto quanto o organicidade do estado hegeliano, e não aplicável a realidade humana, que tem sua "rede social", seu "inconsciente coletivo", " sua subjetividade" imanente as relações produtivas. E, não ao contrário, como sugere esta abordagem. O que vislumbro é, mais uma vez, uma tentativa "racional" de separar o inseparável. Se o pensamento moderno buscava separar "corpo" e "alma", razão e fé, esse pensamento contemporâneo quer, da mesma forma dividir, não mais o corpo e a alma, e sim a razão, em razão mecânica e razão social.
YEDRA
Por que é abstrata?
MANOEL
Porque é uma idealização, não há como conciliar esse discurso ético de valorização do outro, de respeito a pluralidade, etc., com a individualização presente e necessária no sistema de produção atual, essa "ação comunicativa" fica somente no interior de cada um( como o categórico kantiano e universalização do individuo no estado hegeliano), há uma compreensão disso, porém não há efetivação, pois a realidade é conflitante, paradoxal.
YEDRA
Se tudo que a Filosofia sugere e elabora são meras abstrações, então por que perdemos tempo com ela, não seria melhor limitar nossas leituras às obras de ficção?
MANOEL
A filosofia não é um deus, ela não se presta a criar uma realidade e, sim compreendê-la e a partir dessa compreensão proporcionar ao homem agir no sentido de mudá-la. A filosofia pensa a realidade, ela não cria a realidade, a realidade quem constrói é o homem nas suas relações.
LEO
Habermas não ajudou...
Mas pelo menos deu pra compreender que a razão pode ser tida como valor?

MANOEL
Eu acredito que como os valores são atribuídos pela razão, ela(a razão) será sempre instrumento e valor numa interação permanente e indissociável.
LEO
Então, é isso!
Esta pergunta "RAZÃO: valor ou instrumento?" nos estimula a pensar por que apresenta um aparente dilema, quando ficamos para escolher um OU outro, mas, na maioria das vezes, acabamos por demonstrar que é um E outro!
MANOEL,
Isso, não se pode dividir a razão, assim como não se pode separar corpo e mente!
As relações humanas se dão entrelaçadas, interligadas e interdependentes. Sociedade, trabalho, consumo, produção, política, economia também se entrelaçam e se relacionam na mesma proporção, pois são produto e produtores de relações humanas.

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