Um dia nasceu, no meio dos incautos,
uma criança amaldiçoada. Pelo brilho em seus olhos, já se podia apreender o
sofrimento de sua existência e a tristeza de seu viver. Era incrivelmente feio,
quase assustador, a sua aparência era quase um acinte, entre os lindos e
medíocres habitantes desse lugar privilegiado pela ignorância e beleza. Seus
olhos tinham a avidez da descoberta e suas pequeninas mãos buscavam o mundo e a
natureza como se elas fossem a fonte da vida e da felicidade. Desejava muito
mais que a bela borboleta cheia de cores ou a luz do espelho, no seu rosto
disforme.
Na
sua primeira infância, descobriu os buracos, as sombras, Revirou as coisas,
buscou os “embaixo”, virou as pedras, descobriu os vermes e as larvas,
escandalizou seus pais, sujou-se, lambuzou-se na lama e andou descalço na
areia, como se fosse normal ser anormal. Engatinhava fora do berço e ralava-se
no cimento cru da área de serviço, onde Wanda, aquela que não falava e nem
existia além da cozinha e da lavanderia, reinava. Wanda, que na sua imaginação
era a guerreira negra, a rainha dos soldados da água, do gás que se erguiam
altivos em suas fardas grossas, azuis ou verdes, e suas mãos fortes, como se
fossem mini guindastes, a levantarem e
conduzirem, juntamente com os nobres cavaleiros do açougue e do supermercado,
os elementos básicos que mantinham acesa
a essência da vida.
E
quem poderá dizer que ele estava errado?... Todos. Era unânime a sentença
escrita nos olhos opacos dos cidadãos, embora a voz doce e colorida deles
soasse tão leve e refrescante quanto um sorvete de baunilha numa tarde de
verão. Nem a mãe e nem o pai, nem mesmo a menina, aquela que lhe olhava às
vezes, com olhos de lamparina. Nem mesmo Joana, filha de Wanda, que era a
companheira das injurias investidas, era capaz de lhe ser vidro. Nem Valdo, seu
amigo imaginário, seu fiel companheiro, poderia negar-lhe a estranha condição.
Sentia-se entre estranhos ou percebia-se estranho entre iguais.
E
assim crescia Josiano, menino sem freios, sempre querendo saber o porquê do quê,
não tinha qualquer importância, apenas queria entender, por exemplo, porque
nascia o dia e se não morria a noite. Se existia luz além da cegueira e se era
o mundo a lixeira de Deus. Quem se atrevia a responder-lhe tamanhas asneiras e
disparates? Quem sabe Valdo, ou mesmo Wanda... Ou, quem sabe Joana? Talvez ela,
na sua inocência velada, sem saber de nada, eloquência se fizesse e lhe
dissesse do outro lado. Daquele lado da rua, onde se vestia de preto e se
cobria os olhos, com as vendas e os bonés, com as algemas e com as esmolas?
Quem sabe... Ninguém dirá!
Moleque,
menino birrento, desobediente, inconsequente, nunca se fazia consenso, sempre
resvalando opiniões e se opondo ao inevitável... Teimosia pura, pura agonia,
pulando muros, desafiando cercas, enfrentando cata-ventos com os ventos
contrários. Fugia da escola e aprendia na biblioteca. Cantava a música dos
pássaros e falava o idioma dos animais selvagens, ninguém lhe entendia, mas,
sabiam do que ele falava. Não o compreendiam, mas entendiam a sua cara de
raiva, estranhavam seus dentes expostos, mas sabiam da necessidade de sua
raiva. Ninguém lhe enfrentava.
Josiano
adolescente, era quase bicho, calava, estrebuchava, desejava e trancava-se no
quarto, descobrindo-se em seus anseios, vestindo medos e ejaculando revolta, no
prazer solitário de se conhecer. Às vezes pensava em Joana, outras, na menina
de cabelos dourados do outro lado da sua rua que nunca lhe enxergava. Mas quase
sempre era ele quem se satisfazia, na solidão da sua condição. O prazer é
sempre solitário, mesmo quando compartilhado em outras camas e corpos. Isso ele
iria descobrir nos anos que se seguiram, e nas inúmeras camas que dormiria, com
Joanas e Joãos.
É
tempo de sofrer. É tempo de ser muito mais do que sentir. Antes, era pássaro
sem ninho, menino solto no mundo, sem
compromisso e sem fim. Mas, seu rosto se tornou áspero, cheio de pelos
indesejáveis e sua mente, essa demente, queria mais, muito mais que lhe podia
ser possível e o impossível que lhe atravessava as noites e os sonhos, lhe
parecia está ali, além da sua visão, da sua casa, sua rua... Ele foi!
Por
muito tempo ninguém ouviu falar dele, todos ficaram felizes e aliviados,
viveram suas vidas medíocres e sem escalas, cada qual na sua sala, perdido em
seu quintal, preso em seu olhar. Até que um dia, como retro realidade, numa
tela plana de não sei quantas polegadas, aquele rosto magro, esquálido e sem
graça, sua cara de tacho e seu corpo indesejável, se fez espada, faca, raiva,
medo, saudade. Cada ser naquele lugar se viu traspassado, atingido, violado,
despertado, incomodado! Aquele ser sem mesura reativara cada sentido,
relativizara cada mentira, cada palavra dita ou ouvida era assim como uma tapa,
um beijo, uma caricia sonhada ou um assassinato pensado, programado, desejado...
Josiano,
cercado de policiais em seus uniformes azuis e seus óculos escuros, jazia sem
vida, esfaqueado sem motivo algum, segundo
o jovem apresentador, com sua cara de anjo e seu sorriso branco, ele, ilustre
desconhecido, nunca antes por ali visto, como dissera um velho amarrotado e de
olhos de corvo, que morava no prédio do outro lado da praça, ali chegara por
volta da meia noite, deitara e dormira num banco de na praça, numa cidade
distante, de um estado do sul e jamais acordara. Alguns garotos, desses com a
sua cara, que perambulavam pelas esquinas e cheiravam a ratos, com suas
garrafas, seus sonhos e seus cachimbos de lata, resolveram que não queriam um
espelho!
Manoel N Silva
Nenhum comentário:
Postar um comentário