sexta-feira, 24 de maio de 2019

A LAMPARINA...






É quase noite, sentada na beirada da rede, olhando o teto de palha, onde uma aranha desenhava círculos com sua teia fina e brilhante, sentido no corpo o suor gotejar e o peito arfar no ritmo descompassado da sua respiração entrecortada, aqui e ali, por um pigarro provocado pela falta de umidade, que ressecava a boca e irritava a garganta. Os olhos lacrimejantes agarrando-se aquela visão. Enquanto o mundo lá fora avermelhava-se em busca da escuridão, seus dedos  vasculham o entorno em busca da caixa de fósforos e da velha lamparina a querosene, que jazem em uma mesinha no canto do quarto, ao alcance de suas mãos.
Aos poucos, o vermelho escuro, quase negro, que entra pelas frestas da parede de barro e pela pequenina janela na parede oposta a mesinha, quase como um furo quadrado ao lado da porta de talos de carnaubeira, ligados um a um por cordões, formando uma esteira que cobre a abertura que leva a sala, vai fazendo desaparecer a teia e a aranha, dando lugar a uma semiescuridão angustiante e pesada. Suas mãos encontram finalmente a caixa de fósforos, e ávidas por luz, retiram um palito e riscam-no, protegendo a chama nas mãos em concha e a dirigem para o pavio da lamparina, acendendo-o e lançando uma claridade bruxuleante seguida por  um cheiro nauseante de querosene e uma pequena quantidade de fumaça escura, que aos poucos, vai diminuindo na mesma proporção que a chama aumenta até torna-se um fio branco   que sobe  a partir da chama e ao sabor do mormaço que vez ou outra, provoca piruetas e desenhos  que se refletem na parede  áspera, como um balé macabro.
Um sorriso feio em uma boca banguela, ornada de apenas um dente, grande e cariado, se abre em uma demonstração de prazer, seus olhos fundos, quase invisíveis nesse ambiente pouco iluminado, parecem pequeninas luzes em buracos na parede, como se fossem vagalumes ali pousados, me olhando com a ternura que jamais conhecerei em toda a minha vida, cabelos brancos e rareados descem como fios de luzes em torno de sua cabeça, suas faces brancas como a neves, ponteadas de manchinhas escuras, seus braços finos e igualmente ponteados de manchas escuras na pele de neve, iluminada por aquela luz quase irreal, seus joelhos pequenos e suas pernas miúdas que terminam em pés igualmente pequenos, dentro de um chinelo barato.
Agora é o desejo e o vício que movem suas mãos magras em direção a um cachimbo de barro, igualmente repousando na mesinha, juntinho a um saquinho de fumo de rolo, previamente, cortado e picado e que vão, ambos, parar entre seus dedos. Em um ritual que conheço de cor e nunca esquecerei, o fumo picado vai parar dentro do cachimbo e transforma-se em fumaça que enche sua boca em um movimento que lembra um fole, vai trazer-lhe um pouco de alegria e prazer... Ela ficava ali, balançando-se na rede, pitando seu cachimbo e eu olhando-a, deitado na esteira de palha de carnaúba, e lendo meus cordéis...

Manoel N Silva

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