quarta-feira, 17 de julho de 2019

O SONHADOR



Ele sempre sonhava. Sonhos quase reais, complexos, cheios de detalhes e, quase sempre, aterrorizantes. Eram sonhos que nunca acabavam, pesadelos que varavam-lhe as noites e o deixavam intrigado e cansado. Aqueles sonhos eram como seriados televisivos. Eram como se fossem uma segunda vida. Bastava um cochilo no ônibus, uma soneca ao meio-dia, após a refeição, e ele mergulhava naquele mundo sombrio, onde as coisas eram sempre opacas, moles, escorregadias e movediças. Nunca encontrava alguém, estava só naquele mundo imenso, mares e lagos, rios caudalosos e dunas que nunca acabavam, entremeados de pântanos e estranha vegetação aquática seca, sem cor. Nem sabia se realmente eram plantas ou simplesmente fósseis petrificados... 

Os caminhos sempre cheios de subidas e descidas infindáveis, trilhas cheias de pedras escorregadias e cavernas escuras, úmidas e vazias.Era um mundo sem vida, sem brilho, sem luz. Nesse mundo, estava sempre apressado, querendo chegar a algum lugar, atravessar um rio, escalar uma duna, caminhar por um pântano ou sair de uma caverna, tinha que chegar em algum lugar, mas eram sempre infindáveis os caminhos, era uma jornada inútil, mas, absolutamente necessária e urgente!   Nos sonhos era imprescindível seguir, ele sequer sabia aonde ir, mas a angústia e desejo  de seguir em frente, lhe moviam  e o impulsionava nessa empreitada sem sentido e sem finalidade. Acordava e já não sabia da realidade, seu mundo cinza, sua esposa esquálida e seus filhos franzinos, feios, com sorrisos amarelos, sempre a fazerem trejeitos ridículos.

Sai de casa cedo da manhã, pega o transporte coletivo, as mesmas pessoas, os mesmos rostos marcados pela mediocridade, os mesmos sorrisos falsos, as mesmas palavras, os mesmos lamentos: a filha que engravidou do namorado, o filho que se envolveu com drogas, o outro que assumiu sua sexualidade, a vizinha que dá  mole e ele ali, calado, suando, enojado, com vontade de gritar que  se calem, que se fechem em seus armários, que  desapareçam da sua vida! Desce do ônibus e o sol lhe fere os olhos, o rosto, a pele, essa maldita claridade, essa luz cortante, esse turbilhão de cores e vozes, pessoas que vêm e que vão, surssuros, suores, odores nauseantes, cores berrantes, que ferem os olhos e o gosto, moças saltitantes, transbordando sexualidade, moços de olhares gulosos, meninos, senhoras, senhores, enfim, pessoas que vagam sem rumo e sem sentido, perdidos em seus desejos de metais, em seus passeios matinais, preocupados com seu colesterol e sua pressão alta, seu bigode e sua barriga, suas estrias, seus seios caidos e seus sulcos faciais...

Ele chega ao escritório, senta na sua  cadeira, olha em volta, seu emprego medíocre, com tarefas iguais, seu chefe gordo e rico sempre sorrindo, uma alegria sebenta, oleosa, que fedia no seu nariz, como a gordura saturada no tacho do pasteleiro da esquina. Seus colegas de trabalho, sempre atentos, satisfeitos em suas medianas vidas, engajados nas suas tarefas diárias, tal qual ele, nos seus sonhos, em seguir em frente.. O peito doi, sorri sem graça, fecha os olhos e dorme, dorme e sonha... Não acordará jamais.

Manoel N Silva.

Nenhum comentário: